segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Saber segundo Heraclito


Heraclito foi conhecido como um obscuro proponente de enigmas, o que lhe teria custado a vida, já que os médicos, que parece criticar, nada fizeram para o salvar. Os únicos pormenores sobre a sua vida, que talvez possamos aceitar com segurança, são que ele viveu em Éfeso, que descendia de uma antiga família aristocrática e que não manteve boas relações com os seus concidadãos. Tímon de Filiunte, autor satírico do século III a.C., apelidou-o de ainiktós, "aquele que se exprime por enigmas". Esta crítica deu mais tarde origem ao epíteto de skoteinós, obscurus em latim. Johannes Moreelse pensou-o e pintou-o no séc. XVII como aparece na figura acima.

Heraclito pretende mostrar que se apenas atentarmos no que a apreensão sensível nos dá acabamos por ficar numa irredutível multiplicidade de aspectos. O fr. 123 Diels-Kranz de Heraclito chama a atenção para o facto de que é necessário penetrar mais além e mais fundo, para além da multiplicidade da experiência. Por isso Heraclito diz que "a natureza gosta de se esconder" (fr. 123DK).

A visão tradicional disjuntiva do ou... ou... (v.g. ou a natureza se esconde ou se mostra, ou o uno ou o múltiplo, etc.) é afastada por Heraclito; ele tenta pensar esta oposição, esta contradição. O que é fundamental em Heraclito é uma unidade entretecida de multiplicidade e por outro uma multiplicidade que não é apenas o fragmentário, mas que está também em relação com a unidade, o que é o cerne da dialéctica. Heraclito procura responder à questão de como intervir numa realidade que é una e múltipla.

Heraclito avança na formulação da resposta a esta questão com a introdução da polumathia, o "saber muitas coisas". Porque, na confrontação com a multiplicidade, pode pensar-se que o saber é uma polumathia. Mas Heraclito afirma, no fr. 40 Diels-Kranz, que "o saber muitas coisas não ensina a ter inteligência (nous)".

Por outro lado, o fr. 35 Diels-Kranz diz que "É preciso que os homens que amam a sabedoria investiguem muitas coisas". O que afasta a ideia de que apenas a unidade abstracta interessa ao pensar filosófico, mas também a multiplicidade; o importante é articulá-los. Tem que haver uma articulação entre extensão e profundidade.

Noutro fragmento Heraclito diz "Com efeito, só uma coisa é sabedoria: conhecer fundadamente a razão que governa todas as coisas através de todas as coisas (diá pantôn)". Ou seja, sabedoria não é conhecer todas as coisas externamente, mas "através de todas as coisas", i.e., por meio delas próprias. Assim, Heraclito não procura a Unidade do Múltiplo, mas sim a Unidade no Múltiplo. Essa unidade que governa, essa estrutura, essa razão não é apenas do mas também no múltiplo.

Só estes poucos fragmentos de Heraclito dão bastante matéria para reflexão, sempre inacabada, abdicando temporariamente da flexão mundana.

Cf. Barata-Moura, José, Episteme - Perspectivas Gregas sobre o Saber, Heraclito-Platão-Aristóteles, Lisboa: 1979.

domingo, 2 de agosto de 2009

Soberania no feminino


Os mais altos lugares de poder no Oriente Antigo não pertenceram apenas a homens. No seio da família real judaica um dos mais altos cargos políticos era detido pela Rainha Mãe, chamada gebirah pelos Hebreus. Entre os Sumérios a congénere desta figura judaica era a SAL.LUGAL GAL e entre os semitas de Ugarit a rabitu. Os Hititas também tinham uma tawananna, termo traduzível por Grande Senhora ou Grande Rainha.

Uma prova da importância desta figura nas cúpulas judaicas do poder vem no nome oficial do rei: o nome de sua mãe, juntamente com o patronímico ou o lugar de origem, acompanhava quase sempre o nome do monarca.

No império hitita, a tawananna, diferentemente do que se passava no domínio judaico, era a mulher do rei em exercício, mas não necessariamente a Rainha Mãe. Se a primeira função da tawananna parece decorrer no âmbito do culto, sabemos que tinha um papel activo tanto nas relações internacionais como na política interna do reino.

A tawananna mantinha o seu poder durante vários reinados consecutivos: a esposa favorita do sucessor do rei com quem a tawananna casara não podia assumir o papel de nova tawananna antes de a sua predecessora morrer ou ser oficialmente afastada. A mulher do rei hitita Supiluliuma I (1370-1342 a.C.), uma nativa da Babilónia, era mesmo chamada Tawananna. O herdeiro de Supiluliuma I, Arnuwanda, outorgou-lhe o título de “Grande Sacerdotisa de Arinna, Deusa do Sol”.

Já o sucessor de Arnuwanda, Mursili II (1340-1310 a.C), quis afastar Tawananna do poder. Para tal acusou-a de ter substituído os rituais hititas por costumes babilónicos e de se ter apropriado de fundos que pertenciam ao culto local. Foi ainda acusada de ter realizado um feitiço mortal sobre uma das esposas reais. Com isto, Mursili II conseguiria afastar Tawananna e de a substituir pela hurrita Danu-hepa, sua mãe (de Mursili). Também Danu-hepa teve um elevado número de funcionários e várias cidades fortificadas sob sua alçada. Manter-se-ia no poder durante três reinados consecutivos.

A extensão do poder deste tipo de figuras femininas – da gebirah, da SAL.LUGAL GAL, da rabitu e da tawananna – era determinada pela envolvência político-estratégica do seu casamento. Ficava logo estabelecido no contrato de casamento que ela teria um estatuto especial – leia-se superior – no interior da polígama casa real. Desde logo porque seria o seu filho a herdar o trono.

Demonstra isto que o poder feminino nem sempre foi exercido na penumbra da casa real. No Oriente Antigo era exercido de forma explícita e oficial. Se adicionarmos a este poder oficial a "magistratura de influência" que uma mãe ou uma esposa podem ter junto de um soberano, dificilmente se concluirá pela existência de um “sexo fraco” no Oriente Antigo. Aliás, basta lembrar Bathsheba - na imagem pintada por Willem Drost em1654 -, primeiramente esposa do guerreiro hitita Uriah que acabaria por casar com o rei israelita David e ser mãe do rei Salomão.

Cf. Spanier, Ktziah, “The northern israelite Queen Mother in the judaen court: Athalia and Abi”, in Meir Lubetski et al. (eds.), Boundaries of the Ancient Near Eastern World – A Tribute to Cyrus H. Gordon, Sheffield: Academic Press, 1998.